CADA POEMA É UM FRAGMENTO DO POEMA GERAL QUE QUINTANA VEIO COMPONDO
DURANTE TODA A SUA VIDA

sexta-feira

OS ARROIOS


Os arroios são rios guris...
Vão pulando e cantando dentre as pedras.
Fazem borbulhas d'água no caminho: bonito!

Dão vau aos burricos,
às belas morenas,
curiosos das pernas das belas morenas.
E às vezes vão tão devagar
que conhecem o cheiro e a cor das flores
que se debruçam sobre eles nos matos que atravessam
e onde parece quererem sestear.
Às vezes uma asa branca roça-os, súbita emoção
como a nossa se recebêssemos o miraculoso encontrão
de um Anjo...
Mas nem nós nem os rios sabemos nada disso.
Os rios tresandam óleo e alcatrão
e refletem, em vez de estrelas,
os letreiros das firmas que transportam utilidades.
Que pena me dão os arroios,
os inocentes arroios...
Mario Quintana (Baú de Espantos)

segunda-feira

AS SETE NAMORADAS


Era uma vez um príncipe que tinha sete namoradas: uma namorada branca, uma namorda amarela, uma namorada preta, uma namorada verde, uma namorada azul..."
Neste ponto interrompi o improviso, para ver o efeito em meu pequeno auditório.
Havia seis pares de olhos deslumbrados. Continuei, então: "... é que uma andava sempre vestida de branco, a outra sempre vestida de amarelo, a outra..."
- Ora! - protestou Lili, interpretando os sentimentos do público - então não havia uma azul de verdade?!
Um fracasso, a minha história. Mas aprendera que o essencial, em histórias para crianças, é que o fantástico seja real por assim dizer, que haja uma namorada azul de verdade, como queria Lili. Nada de explicações lógicas, como acontece nas aventuras do padre Brown, sempre tão maravilhosas no início mas que, depois que o raio do padre começa a raciocinar e destrinchar tudo, deixam certo desapontamento infantil nos leitores adultos.


in: Da Preguiça como Método de Trabalho - 1987

SÓ PARA SÍ



Dona Cômoda tem três gavetas.
E um ar confortável de senhora rica.
Nas gavetas guarda coisas de outros tempos, só para si.
Sempre foi assim, dona Cômoda:
gorda, fechada e egoísta.

Mario Quintana – Sapato Florido - 1948

quinta-feira

REFLEXÕES SOBRE A MORTE


ESTE QUARTO
Não é necessário comentários sobre este poema. Basta lê-lo e senti-lo. Seria bom se a morte fosse para todos um céu que pouco a pouco anoitecesse. Mas tal não ocorre. Para muitos este céu escurece de repente, como uma tormenta que se forma em minutos. Para outros o dia transforma-se em penumbra em segundos...vidas interrompidas. Jamais entenderemos porque é assim. Talvez o errado mesmo seja tentar entender o que é casual e inevitável. Somos pequenos demais para tentar entender a gigantesca ordem universal e talvez divina. Mas isso nos faz humanos, ao contrário dos animais pensamos na morte e sofremos com ela por antecipação. Este é o grande mistério da vida...
Bernardo

ESTE QUARTO


Este quarto de enfermo, tão deserto
de tudo, pois nem livros eu já leio
e a própria vida eu a deixei no meio
como um romance que ficasse aberto...

que me importa este quarto, em que desperto
como se despertasse em quarto alheio?
Eu olho é o céu! imensamente perto,
o céu que me descansa como um seio.

Pois só o céu é que está perto, sim,
tão perto e tão amigo que parece
um grande olhar azul pousando em mim.

A morte deveria ser assim:
um céu que pouco a pouco anoitecesse
e a gente nem soubesse que era o fim...

De Mario Quintana para Guilhermino Cesa

OS DEGRAUS



Não desças os degraus do sonho
Para não despertar os monstros.
Não subas aos sótãos - onde
Os deuses, por trás das suas máscaras,
Ocultam o próprio enigma.
Não desças, não subas, fica.
O mistério está é na tua vida!
E é um sonho louco este nosso mundo...

Baú de Espantos

Mario Quintana

terça-feira

AO LONGO DAS JANELAS MORTAS


Ao longo das janelas mortas
Meu passo bate as calçadas.
Que estranho bate!...Será
Que a minha perna é de pau?
Ah, que esta vida é automática!
Estou exausto da gravitação dos astros!
Vou dar um tiro neste poema horrivel!
Vou apitar chamando os guardas, os anjos, Nosso
Senhor, as prostitutas, os mortos!
Venham ver a minha degradação,
A minha sede insaciável de não sei o quê,
As minhas rugas.
Tombai, estrelas de conta,
Lua falsa de papelão,
Manto bordado do céu!
Tombai, cobri com a santa inutilidade vossa
Esta carcaça miserável de sonho...

Mário Quintana

segunda-feira

UM POUCO DE MARIO QUINTANA 2


Avesso a distinções, Quintana era, de fato, um ser telúrico, um homem simples e um pândego de escol. Boêmio, nefilibata crônico, alienado compulsório, viajante noturno, querubim peripatético das ruas fatigadas de Porto Alegre, tradutor e jornalista que tinha a preguiça como método de trabalho, era poeta-flanêur, que andava pela cidade menosprezando sempre o menor caminho entre dois pontos. Poeta andarilho, numa quadra, pedia cafezinho ou cachaça. Na rua de cima, fazia apostas na loteria ou no bicho. Noutra esquina, se permitia uma pausa para acender um cigarro e admirar uma palmeira Imperial, soturnamente entrevada num canto de paisagem. O ponto de partida era sempre o hotel — Mário sempre foi um soturno habitante provisório, morando em quartos de hotéis. Do Mário reles e urbano, são incontáveis os seus “causos”.

Extraido do texto "Imitando Passarinhos" de Marcelo Xavier (Revista Rabisco

ORIGEM DO CADERNO H


Na redação, tinha por ofício uma coluna, que ele entregava sempre na hora de baixar o jornal, nunca antes. Apesar de poeta, Quintana não podia fugir às contingências da lide de jornal, com hora para entregar as provas dos textos. Como entregava tudo sempre na última hora, Mário batizou sua coluna de Caderno H. Sempre que alguém perguntava sobre o porquê do nome, ele explicava que entregava a coluna sempre “na hora agá”. Passava as tardes enfurnado na redação. Era raro o momento em que ele não era importunado por visitantes, curiosos, políticos ou até mesmo jovens poetas, que iam sempre lhe pedir conselhos. Um de seus colegas do tempo do Correio do Povo, Jayme Copstein, trabalhava a uma mesa de Mário, que sempre recebia gente puxando conversa ou pedindo coisas. Com o tempo, Copstein percebeu que, sempre que a conversa ao lado acabava, o interlocutor de Quintana olhava para Jayme de cara feia, e ia embora. No começo não achou nada, mas, com o tempo, começou a ficar intrigado. Um dia, resolveu perguntar a Mário por que todo mundo que ia pedir alguma coisa ao poeta parecia brabo com ele, que não tinha nada a ver com a história:
— É que eu sempre digo que tu não deixas — explicou Quintana, sério.

O MAPA


A história de “O Mapa” é bastante curiosa, e mostra bem o perfil do escritor lírico, distraído, sempre compelido para o sonho. José Otávio Bertaso, ex-editor da Livraria do Globo, contou certa vez que, no dia em que Quintana entregou os originais do Apontamentos de História Sobrenatural , ficou estático, pensativo, espiando pela janela, do alto do edifício da gráfica da editora, na esquina da avenida Getúlio Vargas com Botafogo, em Porto Alegre, de onde se podia enxergar todo o bairro Menino Deus. Naquele instante, assomado pelo instante mágico da paisagem que, involuntária, surgiu diante de seus olhos, sentou na mesa de Bertaso e escreveu o poema em vinte minutos. Depois, entregou a folha para o editor, e disse, lacônico: “acrescente nos originais”.

Mario Quintana

Olho o mapa da cidade
Como quem examinasse
A anatomia de um corpo...

(É nem que fosse o meu corpo)

Sinto uma dor infinita
Das ruas de Porto Alegre
Onde jamais passarei

Há tanta esquina esquisita,
Tanta nuança de paredes,
Há tanta moça bonita
Nas ruas que não andei
(E há uma rua encantada
Que nem em sonhos sonhei...)
Quando eu for, um dia desses,
Poeira ou folha levada
No vento da madrugada,
Serei um pouco do nada
Invisível, delicioso
Que faz com que o teu ar
Pareça mais um olhar
Suave mistério amoroso
Cidade de meu andar
(Deste já tão longo andar!)
E talvez de meu repouso...