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segunda-feira

A NOITE


A noite é uma enorme Esfinge de granito negro
La fora.
Eu acendo a minha lâmpada de cabeceira.
Estou lendo Sherlock Holmes.
Mas, nos ventres, há fetos pensativos desenvolvendo-se...
E há cabelos que estão crescendo, lentamente, por debaixo da terra,
Junto com as raízes úmidas...
E há cânceres...cânceres!...distendendo-se como lentos dedos...
Impossível, meu caro doutor Watson, seguir o fio desta sua confusa e
deliciosa história.
A noite amassa pavor nas entrelinhas.
É um grude espesso, obscuro...
Vontade de gritar claros nomes serenos
PALLAS NAUSICAA ATHENA Ai, mas os deuses se foram...
Só tu aí ficaste
Só tu, do fundo da noite imensa, a agonizares eternamente na tua cruz!...

In: Aprendiz de Feiticeiro

Cristh of Saint John- Salvador Dali

Inicialmente, esse texto nos apresenta o poeta em uma cena cotidiana: ele está lendo um livro sob “a lâmpada da cabeceira”, durante a noite. A imagem da Noite, porém
Surge como “uma enorme Esfinge de granito negro”, envolvendo a cena com uma aura de mistério, que é reforçada pelas maiúsculas sugestivas. O uso da palavra “Esfinge” nos leva a pensar imediatamente que essa noite tem um caráter enigmático, que é algo a ser decifrado. Por mais que o poeta afirme estar lendo Sherlock Holmes, sua mente não consegue deter-se na seqüência da narrativa e deixa de “seguir o fio” daquela “confusa e deliciosa história”. Ele sabe que, muito mais inquietantes do que os casos enigmáticos desvendados objetivamente pelo detetive, são os mistérios da vida (e da morte), porque esses são indecifráveis. O eu-lírico deixa-se envolver por pensamentos temerosos, imagens de pavor que “a noite amassa nas entrelinhas”: “fetos pensativos desenvolvendo-se”, cabelos crescendo, “lentamente por debaixo da terra”, cânceres “distendendo-se como dedos”. Torna-se impossível ler, porque o “grude espesso, obscuro” da Noite cola-se ao seu ser.
Tomado de pavor, ele expressa sua vontade de “gritar claros nomes serenos”, com os que aparecem em letras maiúsculas iluminando o poema. PALLAS NAUSICAA ATHENA, são as palavras que grita, as quais formam uma seqüência de “AS” abertos e sonoros. Estes surgem como um instante de liberdade. Mas logo em seguida o poeta lembra que “os deuses se foram” e que ele não tem a quem recorrer. Afinal, resta a ele apenas a companhia do único que ficou, do Deus crucificado, que permanece no “fundo da noite imensa” a agonizar eternamente na sua cruz. Esses versos finais nos trazem um outro sentido simbólico para a Noite. Ela passa a ser a imagem da escuridão desconcertante pela qual o homem se vê envolvido desde que abandonou a sua comunhão com o transcendente. Ela é símbolo da angústia da humanidade sem norte, cujo Deus distante revela-se na imagem do Cristo crucificado. O Cristo é o único símbolo possível ao homem moderno, é a manifestação de sua frustração antológica e vivencial, num mundo opaco, doloroso, enigmático e opressor. A imagem se apresenta como uma pálida esperança de redenção futura, pano de fundo de uma vida calcada na insegurança e na incerteza em que resta apenas “o silêncio terrível do Cosmos”.
Análise de Doris Munhoz de Lima

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