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sexta-feira

POEMAS DE BAR


Em alguns momentos, o poeta percebe que o mundo tornou-se intraduzível, estranhamente irreconhecível, e de que não é mais possível sintonizar a palavra poética à música do universo. Vejamos como a realidade se apresenta fragmentada, a partir do olhar contemplativo do poeta, em um dos seus famosos “poemas de bar”:

Bar

No mármore da mesa escrevo
Letras que não formam nome algum.
O meu caixão será de mogno,
Os grilos cantarão na treva...
Fora, na grama fria, devem estar brilhando as gotas
pequeninas do orvalho.
Há, sobre a mesa um reflexo triste e vão
Que é o mesmo que vem dos óculos e das carecas.
Há um retrato do Marechal Deodoro proclamando a República...
E de tudo irradia, grave, uma obscura, uma lenta música...
Ah, meus pobres botões! Eu bem quisera traduzir, para vós, dois ou
três compassos do Universo!...
Infelizmente não sei tocar violoncelo...
A vida é muito curta, mesmo...
E as estrelas não formam nenhum nome.

In: Aprendiz de Feiticeiro

FOTO DANIEL ANDRADE SIMÕES



Augusto Meyer, ao referir-se a esse poema, confessou que via, nesses versos, “a imagem do poeta em sua aventura noturna, de bar em bar, com medo de recolher-se à pensão distante, no alto da ladeira triste, quando os gatos cruzam a rua e a cerração da madrugada põem um gosto amargo na boca”.
No poema, o autor recria um desses momentos de introspecção. Assim, como as letras estão soltas sobre a página na sua misteriosa ausência de lógica, o olhar do poeta pousa aleatoriamente sobre os elementos que compõem o espaço e seu pensamento não segue qualquer linha racional, ultrapassando as fronteiras do espaço e do tempo. Ele se projeta para o futuro, idealizando o seu caixão, “de mogno”, e os grilos que cantarão na treva, em uma atitude que revela o desejo de fuga através da morte. Os grilos solitários cantores noturnos, estão sempre presentes na poesia de Quintana, podendo ser associados à própria figura do poeta que, sozinho na noite, procura notas para compor seu canto. Esse texto é exemplar para que vejamos como se manifesta, nO Aprendiz, o sentimento de impotência do eu-lírico, que passa a desejar a morte, ao sentir que a palavra lírica esvaziou-se de sentido.
Subitamente, ele volta-se de novo ao agora, imaginando a existência simples e bela das “pequeninas gotas de orvalho” que molham a grama e simplesmente existem, despreocupadamente. Elas são parte da misteriosa harmonia do universo, de que irradia a “grave”, “obscura”, “lenta música”, cujos compassos o poeta não consegue traduzir.
Mais uma vez as reticências marcam a suspensão da idéia dos versos. Nesse caso, é como se o silêncio que elas assinalam pudesse expressar a incapacidade do escritor de chegar a uma tradução coerente dos mistérios do mundo. Ele sente que seu instrumento (a palavra), perdeu seu poder de dar significado à realidade humana (talvez se soubesse tocar violoncelo). À morte da palavra poética, portanto, o eu-lírico passa a associar a sua própria morte, como se o sentido de sua própria existência estivesse condicionado à sua tarefa como criador. Esvaziando-se a palavra, perde-se também a razão de ser do poeta.
Análise de Doris Munhoz de Lima

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