CADA POEMA É UM FRAGMENTO DO POEMA GERAL QUE QUINTANA VEIO COMPONDO
DURANTE TODA A SUA VIDA

quarta-feira

OLHO AS MINHAS MÃOS

Depois de "AS MÃOS DE MEU PAI" vamos ouvir na voz do próprio QUINTANA o poema "OLHO AS MINHAS MÃOS" declamado por ele em 1983 na ANTOLOGIA POÉTICA DE MARIO QUINTANA.


Olho as Minhas Mãos
Olho as minhas mãos: elas só não são estranhas
Porque são minhas. Mas é tão esquisito distendê-las
Assim, lentamente, como essas anêmonas do fundo do mar...
Fechá-las, de repente,
Os dedos como pétalas carnívoras !
Só apanho, porém, com elas, esse alimento impalpável do tempo,
Que me sustenta, e mata, e que vai secretando o pensamento
Como tecem as teias as aranhas.
A que mundo
Pertenço ?
No mundo há pedras, baobás, panteras,
Águas cantarolantes, o vento ventando
E no alto as nuvens improvisando sem cessar.
Mas nada, disso tudo, diz: "existo".
Porque apenas existem...
Enquanto isto,
O tempo engendra a morte, e a morte gera os deuses
E, cheios de esperança e medo,
Oficiamos rituais, inventamos
Palavras mágicas,
Fazemos
Poemas, pobres poemas
Que o vento
Mistura, confunde e dispersa no ar...
Nem na estrela do céu nem na estrela do mar
Foi este o fim da Criação !
Mas, então,
Quem urde eternamente a trama de tão velhos sonhos ?
Quem faz - em mim - esta interrogação ?

terça-feira

AS MÃOS DE MEU PAI


As mãos de Quintana - foto Liane Neves


“AS MÃOS DE MEU PAI” uma obra prima de Quintana sem dúvida. Através da observação tão minuciosamente poética das mãos do velho pai, “essa beleza que se chama simplesmente vida” Mario construiu essa pérola poética que não é para se ler apenas uma vez, pois, a cada leitura, mais profundidade se encontra nas estrofes.

AS MÃOS DE MEU PAI

As tuas mãos tem grossas veias como cordas azuis
sobre um fundo de manchas já de cor de terra
- como são belas as tuas mãos
pelo quanto lidaram, acariciaram ou fremiram da
nobre cólera dos justos
Porque há nas tuas mãos, meu velho pai, essa beleza
que se chama simplesmente vida.
E, ao entardecer, quando elas repousam nos braços
da tua cadeira predileta,
uma luz parece vir de dentro delas...
Virá dessa chama que pouco a pouco, longamente,
vieste alimentando na terrível solidão do mundo,
como quem junta uns gravetos e tenta acendê-los
contra o vento?
Ah! Como os fizeste arder, fulgir, com o milagre das
tuas mãos!
E é, ainda, a vida que transfigura das tuas mãos nodosas...
essa chama de vida – que transcende a própria vida
...e que os Anjos, um dia, chamarão de alma.
Mario Quintana

segunda-feira

DENTRO DA NOITE ALGUÉM CANTOU


Dentro da noite alguém cantou.
Abri minhas pupilas assustadas
De ave noturna...E as minhas mãos pelas paradas,
Não sei que frêmito as agitou!

Depois, de novo, o coração parou.
E quando a lua, enorme, nas estradas
Surgem...dançam as minhas lâmpadas quebradas
Ao vento mau que as apagou...

Não foi nenhuma voz amada
Que preludiando a canção sonâmbula,
No meu silêncio me procurou...

Foi minha própria voz, fantástica e sonâmbula!
Foi, na noite alucinada,
A voz do morto que cantou.

sábado

CURTAS

festividade da OAB Porto Alegre-1977

Continuando a sequência de quadras onde Quintana demonstra de forma clara seu desprezo a dogmas e mitos. Deixa claro nos dois primeiros poemas que sua religiosidade passa distante daquelas professadas pelas igrejas. Por fim em “Emergência” nos mostra sua visão da importância do poeta como um artista que leva à reflexão.

DOGMA E RITUAL

Os dogmas assustam como trovões
e que medo de errar a sequência de ritos!
Em compensação,
Deus é mais simples do que as religiões.

O CAMINHO

Passa o rei com seu cortejo.
Passa o Deus no seu andor.
E, milênios depois, neste caminho, apenas
Ainda sopra o vento nas macieiras em flor...


EMERGÊNCIA

Quem faz um poema abre uma janela.
Respira, tu que estas numa cela
abafada,
esse ar que entra por ela.
Por isso é que os poemas têm ritmo
- para que possas profundamente respirar.
Quem faz um poema salva um afogado.

MARIO QUINTANA em "Apontamentos de História Sobrenatural"

sexta-feira

POEMAS CURTOS

Quintana escreveu uma infinidade de poemas curtos, quadras e pensamentos que mostram muito de sua personalidade. Seu sinismo em relação a dogmas é mais latente nesses pequenos poemas, que o deixariam indignado se eu os chamasse de poeminhas. Apresento abaixo alguns todos retirados do livro Velório Sem Defunto:


Nos solenes banquetes
Nos solenes banquetes de próceres internacionais
- em especial sobre desarmamentos -
O aparte mais espontâneo
é o riso de prata de uma colherinha
Que por acaso tombou no chão!


Da Imparcialidade
O homem - eternamente escravo de suas paixões pessoais -
Ë absolutamente incapaz de imparcialidade.
Só Deus é imparcial.
Só Ele é que pode, por exemplo,
Abençoar, ao mesmo tempo,
As bandeiras de dois exércitos inimigos que vão entrar em luta...


Madrigal
Tu és a matéria plástica de meus versos, querida...
Porque, afinal,
Eu nunca fiz meus versos propriamente a ti:
Eu sempre fiz versos de ti!


Estranheza
Os vivos e os mortos
Sempre tivemos uma coisa em comum:
Não acreditamos muito uns nos outros...


Um novo Cântico dos Cânticos
Vamos compor, ó Bem-Amada, um novo Cântico dos Cânticos:
"Tu louvarás unicamente a ti!
Eu louvarei unicamente a mim!"
(É tão sincero quanto o outro, não achas?...)


Reflexão para o dia de finados
Morrer, enfim, é realizar o sonho
que todas as crianças têm...
O motivo? Só elas sabem muito bem:
Fugir... fugir de casa!


As despedidas
Nas despedidas
O mais doloroso é que
- tanto o que fica como o que vai embora -
Poem-se os dois a pensar:
"Meu Deus! quando é que parte o raio deste trem!"




 

quinta-feira

VIRÁ BATER À NOSSA PORTA


Esse tropel de cascos na noite profunda
Me enche de espanto, amigo...
Pois agora não existem mais carros de tração animal.
É com certeza a morte no seu carro fantasma
Que anda a visitar seus doentes pela cidade..
Será ela? Virá acaso bater à nossa porta?
Mas os fantasmas não batem; eles atravessam tudo silenciosamente,
Como atravessam nossas vidas...
A morte é a coisa mais antiga do mundo
E sempre chega pontualmente na hora incerta...
Que importa, afinal?
É agora a única surpresa que nos resta!



Mario Quintana; Velório sem defunto,

sábado

NEM SABES COMO FOI AQUELE DIA


Nem sabes como foi naquele dia...
Uma reunião em suma tão vulgar!
Tu caíste em estado de poesia
Quando o Sr. Prefeito ia falar...

O mal sagrado! Que remédio havia?!
E como para nunca mais voltar,
Lá te foste na tarde de elegia,
Por essas ruas a perambular.

Paraste enfim junto a um salgueiro doente,
Um salgueiro que espiava sobre o rio
A primeira estrelinha...E, longamente,

Também ficaste à espera (quanta ânsia!)...
Mas a estrelinha, como um sonho, abriu,
Longe, no céu azul da rua da infância!

Mario Quintana em: A Rua dos Cataventos

sexta-feira

POEMA EM TRÊS TEMPOS


Debruço-me
Sobre mim
Com a melancolia
De quem contempla as coisas disparatadas que há
na vitrine de um bric...

Pobre alma, menina feia!
As lágrimas embaciam os teus óculos.
E o mais triste é que são verdadeiras lágrimas,
São um mero subproduto do tempo,
Como esse pó de asas de mariposas
Que ele vai esfarelando, aqui, e ali, sobre todas as coisas...

II

O meu anjo da guarda é dentuça,
Tem uma asa mais baixa que a outra.

III

Obrigado, meninazinha, por esse olhar confiante,
Belo beijo como uma entrelinha...
Há muito que eu não me sentia assim, tão bem comigo...
Há muito que só me dirigiam olhares de interrogação!
Poeta, está na hora em que os galos móveis dos pára-raios
Bicam a rosa dos ventos,
Está na hora de trocares a tua veste feita de momentos...
Esta na hora
E quando
Aflito
Levas
Teu relógio ao ouvido,
Só ouves o misterioso apela das águas cantando distantes!

quinta-feira

DO CADERNO H

Mais um gostoso texto de CADERNO H, onde Quintana confronta novamente a tradição com a modernidade, o novo e o velho. O texto se desenrola com simplicidade e numa linguagem regional, delicioso de acompanhar.

AQUELE ESTRANHO ANIMAL

Os de Alegrete dizem que o causo se deu em Itaquí, os de Itaquí dizem que foi no Alegrete, outros juram que só poderia ter acontecido em Uruguaiana. Eu não afirmo nada, sou neutro.
Mas pelo que me contaram, o primeiro automóvel que apareceu entre aquela brava indiada, eles o mataram a pau, pensando que fosse um bicho. A história foi assim como já lhes conto, metade pelo que ouvi dizer, metade pelo que inventei e a outra metade pelo que sucedeu às deveras. Viram? É uma história tão extraordinária mesmo que até tem três metades...Bem, deixemos de filosofança e vamos ao que importa. A coisa foi assim, como eu tinha começado a lhes contar.
Ia um piazinho estrada a fora no seu petiço – tropr, tropr, tropr – (esse é o barulho do trote) – quando de repente ouviu – fufufupumbum! Fufufupumbum chiiiipum!
E eis que a “coisa”, até então invisível, apontou por detrás de um capão, bufando que nem touro brigão, saltando que nem pipoca, se traqueando que nem velha coroca, chiando que nem chaleira derramada e largando fumo pelas ventas como a mula-sem-cabeça.
“Minha Nossa Senhora!”
O piazinho deu meia-volta e largou numa disparada louca rumo à cidade, com os olhos do tamanho de um pires e os dentes rilhando, mas bem cerrados para que o coração aos corcoveios não lhe saltasse pela boca.
É claro que o petiço ganhou luz do bicho, pois no tempo dos primeiros autos eles perdiam para qualquer matungo.
Chegado que foi, o piazinho contou a história como pode, mal e mal e depressa, que o tempo era pouco e não dava para maiores explicações, pois já se ouvia o barulho do bicho que se aproximava.
Pois bem, minha gente: quando este apareceu na entrada da cidade, caiu aquele montão de povo em cima dele, os homens uns com porretes, outros com garruchas que nem tinham tido tempo de carregar de pólvora, outros com boleaderas, mas todos a pé, porque também não houvera tempo para montar, e as mulheres umas empunhando suas vassouras, outras as suas pás de mexer marmelada, e os guris, de longe, se divertindo com seus bodoques, cujos tiros iam acertar de cheio nas costas dos combatentes. E tudo abaixo de gritos e de pragas que nem lhes posso repetir aqui.
Até que enfim houve uma pausa para respiração.
O povo se afastou resfolegante, e abriu-se uma clareira, no meio do qual se viu o auto emborcado, amassado, quebrado, escangalhado, e não digo que morto, porque as rodas ainda giravam no ar, nos últimos transes de uma teimosa agonia. E quando as rodas pararam, as pobres, eis que o motorista, milagrosamente salvo, saiu penosamente engatinhando por debaixo dos escombros de seu ex-automóvel.
- A la pucha! – exclamou então um gasca, entre espantado e penalizado, - o animal deu cria!
Mario Quintana em CADERNO H.

quarta-feira

DO CADERNO H


No Caderno H, Quintana começa a demonstrar certa angústia diante do progresso que ele nos apresenta como “insidiosa substituição da harmonia pela cacofonia”. Quintana demonstra sua insatisfação para com o destino das coisas, o tradicional choque do avanço tecnológico e industrial contra uma harmonia ideal e romântica que habitava o passado. No texto MARIA FUMAÇA, sentimos claramente essa posição de seu autor.

MARIA FUMAÇA

As lentas, poeirentas, deliciosas viagens nos trens antigos. As famílias (viajavam famílias inteiras) levavam galinhas com farofa em cestas de vime, que ofereciam, pois não, aos viajantes solitários.
E os viajantes solitários (e os meninos) ainda desciam nas estaçõezinhas pobres...para pastéis, os sonhos, as laranjas...
E ver as moças da localidade, que iam passear nas gares para ver os viajantes, uns e outros de olhos cumpridos – eles num sonho repentino de ficar, elas num sonho passageiro de partir.
Um apito, a fumarada, resolvia tudo.
Mas hoje nem há o que resolver. E é quase proibido sonhar. O mal dos aviões é que não se pode descer toda hora para comprar laranjas.
Nesses aviões vamos todos imóveis e empacotados como encomendas. Às vezes encomendas para a eternidade...
Cruzes, poeta! Deixa-te de idéias funéreas e pensa nas aeromoças, arejadas e amáveis como anjos.
E “anjos”, aplicado a elas não é exagero nenhum. Pois não nos atendem em pleno céu?
Porém, como já nos trazem tudo de bandeja, eis que essa mesma comodidade de creche em que nos sentimos tira-nos o saudável incomodo de iniciativas e improvisos.
Entre a monotonia irreparável das nuvens, nada vemos da viagem. Isto é, não viajamos, chegamos.
Pobres turistas de aeroportos, damos a volta ao mundo sem nada ver do mundo.
Mario Quintana

terça-feira

A BELEZA DOS VERSOS IMPRESSOS

FOTO LIANE NEVES

A beleza dos versos impressos em livro
- serena beleza com algo de eternidade –
Antes que venha conturbá-los a voz das declamadoras.
Ali repousam eles, misteriosos cântaros,
Nas suas frágeis prateleiras de vidro...
Ali repousam eles...imóveis e silenciosos.
Mas não mudos e iguais como esses mortos em suas tumbas.
Têm cada um, um timbre diverso de silêncio...
Só tua alma distingue seus diferentes passos,
Quando o único rumor em teu quarto
É quando voltas, de alma suspensa – mais uma página
Do livro...Mas um verso fere teu peito como a espada de
um anjo.
E ficas como se tivesses feito, sem querer, um milagre...
Oh! Que revoada, que revoada de asas!

Mario Quintana em Apontamentos de História Sobrenatural

segunda-feira

O ETERNO CRISTO


O povo adora e vive suspirando por um Messias,
Que o venha libertar de tudo no mundo,
Mas quando esse Dia Santo
Chega afinal,
Todos os seus crentes, cheios de espanto e medo,
A única coisa que conseguem fazer é apedrejá-lo!

Mario Quintana: Velório sem defunto
FOTO DANIEL DE ANDRADE SIMÕES

domingo

TERRA


Terra! Um dia comerás meus olhos...
Eles eram
No entanto
O verde único de tuas folhas
O mais puro cristal de tuas fontes...

Meus olhos eram os teus pintores!

No final quem precisa de olhos para sonhar?
A gente sonha é de olhos fechados.

Onde quer que esteja...onde for que seja...
Na mais densa treva eu sonharei contigo,
Minha terra em flor!...
Quintana em: Apontamentos de História Sobrenatural
FOTO DANIEL DE ANDRADE SIMÕES

sexta-feira

DECADÊNCIA E ESPLENDOR DA ESPÉCIE


Não sei o que terá acontecido com a espécie humana.
Esta ausência de pelos... Para os outros mamíferos a nossa nudez pode parecer repugnante como, para nós, a nudez dos vermes.
E depois, a nossa verticalidade é antinatural. Estas mãos pendentes, inúteis, são ridículas como as dos cangurus sentados.

Se fôssemos peludos e quadrúpedes, ganharíamos muito em beleza e, sem a atual tendência à adiposidade, poderíamos ser quase tão belos como os cavalos.
Felizmente, inventou-se a tempo o vestuário que, pela variedade e beleza (a par de sua utilidade em vista do fatal desabrigo em que ficamos), redime um pouco essa degenerescência.
E acontece que inventamos também o mobiliário, os utensílios: no caso vigente, esta cadeira em que escrevo sentado a esta mesa, à luz artificial desta lâmpada.
E ainda este ato de escrever, isto é, de expressar-me por meio de sinais gráficos, é mais uma prova de nossa artificialidade.
Mas quem foi que disse que eu estou amesquinhando a espécie? Quero apenas significar que, em face das suas miseráveis contingências, o homem criou, além do mundo natural, um mundo artificial, um mundo todo seu, uma segunda natureza, enfim.
O homem, esse mascarado...

Mario Quintana em: Caderno H

quinta-feira

LIANE NEVES


Por dever de consciência tenho que fazer referência à fotografa Liane Neves. Liane Neves é a autora da maioria das fotos de Quintana que estão postadas neste Blog.Fotos que ela publicou em seu livro “A Porto Alegre de Mario Quintana”.

MONOTONIA


É preciso algo que nos preocupe
Para acabar com a monotonia.
Briga com a sogra, duvida
De tua vida, de Deus, de tudo,
Das próprias coisas que melhores julgas,
Porque, na verdade,
Não há nada mais chato na vida
Do que um cachorro sem pulgas...

NOTURNO


De noite todos os meus pensamentos são escuros
E todas as palavras têm a letra "u"
Rude
Virtude
Cruzes!
Até mesmo, Bandeira, teu "sapo-cururu da beira do rio!”
Não me digam que o melhor é acender todas as luzes!
Odeio a luz elétrica e todas as luzes artificiais.
A gente repousa na escuridão como num ventre maternal.
E o melhor enredo para isso tudo
É me atirar de súbito num açude
Seco!

quarta-feira

CONFISSÃO


Que esta minha paz e este meu amado silêncio
Não iludam a ninguém
Não é a paz de uma cidade bombardeada e deserta
Nem tampouco a paz compulsória dos cemitérios
Acho-me relativamente feliz
Porque nada de exterior me acontece...
Mas,
Em mim, na minha alma,
Pressinto que vou ter um terremoto!
Mario Quintana - Velório sem defunto, 1990

terça-feira

OPERAÇÃO ALMA

Gioconda - Da Vinci

Não há o que dizer da construção poética que Quintana faz a respeito de um sorriso recebido e que o marcou profundamente. Basta ler o poema para sentir a beleza desse sorriso.


Há os que fazem materializações...
Grande coisa! Eu faço desmaterializações.
Subjetivação de objetos.
Inclusive sorrisos,
Como aquele que tu me deste um dia com o mais
puro azul de teus olhos
E nunca mais nos vimos (Na verdade a gente nunca mais se vê...)
No entanto,
Há muito que ele faz parte de certos estados do céu,
De certos instantes de serena, inexplicável alegria,
Assim como um vôo sozinho põe um gesto de adeus na paisagem,
Como uma curva de caminho,
Anônima,
Torna-se às vezes a maior recordação de toda uma volta ao mundo!

segunda-feira

OS GRILOS


Os grilos estão muito presentes nos poemas quintanianos. Os grilos e seu incessante cricrilar.
Os grilos com suas frageis britadeiras,
ou ainda:

E os grilos?
Não estão ouvindo lá fora os grilos?
Sim os grilos...
Os grilos...os grilos...
Os grilos são os poetas mortos.

Ou ainda neste poema


Meu deus, se a gente,
Pudesse
Puxar
Por uma
Perna
Um só
Grilo,
Se desfiariam todas as estrelas!

ou ainda neste pensamento do Caderno H

Toda noite os grilos fritam não sei o quê. A madrugada chega, destampa o panelão: a coisa esfria...

Mas fiquemos com mais este magnífico poema:

OS GRILOS

Os grilos abrem frinchas no silêncio.
Os grilos trincam as vidraças negras da noite.
E o silêncio das vastas solidões noturnas
é uma rede tecida de cricrilos...Mas
impossível que haja tantos grilos no mundo,
pensa o Doutor...Sim, talvez haja um problema do labirinto,
retruco, telepático. Mas eu só acredito no que está nos meus poemas,
doutor... Meus poemas é que são os meus sentidos
e não esses, tão poucos, que se contam pelos dedos
e não passam de um único bicho estropiado de cinco patas,
com que mal pode se locomover.
Chego ao fim da consulta como chego ao fim deste soneto.
Fecha-se a porta do poema e saio para a rua:
- um pobre bicho perdido, perdido, perdido...

sábado

FIM DO MUNDO


Ponho-me às vezes a cismar como seria belo
o fim do mundo, antes de Cristo...

Nos campos verdes
Decorativas ossadas
Brancas geometrias.

Na cidade morta
Colunas. O azul, imóvel, sonha
A última asa.

A folha,
Graça infinita,
Se desprende e tomba

No tanque: leve sorriso da água.

Porém, quando este mundo cibernético for para o
diabo que o forjou
E todas as nossas bugigangas eletrônicas virarem sucata
E todas as estrelas perderem os seus nomes,
Os únicos poetas que os sobreviventes entenderão
São os que hoje ainda falam no cricrilar dos grilos,
No frêmito do primeiro amor...

Redescobridores encantados da poesia
Esses pobres homens não serão nem ao menos
arqueólogos
E nós descansaremos, finalmente , em paz!

quinta-feira

DO CADERNO H


Na redação Quintana tinha por ofício uma coluna, que ele entregava sempre na hora de fechar o jornal, nunca antes. Apesar de poeta, Mario não podia fugir às regras do jornal, com hora para entregar as provas dos textos. Como entregava tudo sempre na última hora, Mário batizou sua coluna de CADERNO H. Sempre que alguém perguntava sobre o porquê do nome ele explicava que entregava a coluna sempre “na hora agá”.
Vamos explorar alguns trechos de seu Caderno H:

Le penseur de Rodin... coitado... nunca se viu ninguém fazendo tanta
força para pensar!

Cidade grande: dias sem pássaros, noites sem estrelas

O pior dos problemas da gente é que ninguém tem nada com isso

O que me impressiona, à vista de um macaco, não é que ele tenha sido nosso passado: é este pressentimento de que ele venha a ser nosso futuro.

Qual Ioga, qual nada! A melhor ginástica respiratória que existe é a leitura, em voz alta, dos Lusíadas

E essas que enxugam as lágrimas em nossos poemas com defluxos em lenços... Oh! tenham paciência, velhinhas... A poesia não é uma coisa idiota: a poesia é uma coisa louca!

Mas por que datar um poema? Os poetas que põem datas nos seus poemas me lembram essas galinhas que carimbam os ovos...

Por vezes, quando estou escrevendo este cadernos, tenho um medo idiota de que saiam póstumos. Mas haverá coisa escrita que não seja póstuma? Tudo que sai impresso é epitáfio.

O poema essa estranha máscara mais verdadeira do que a própria face.
Quando alguém pergunta a um autor o que este quis dizer, é porque um dos dois é burro.
[in: Caderno H, Editora Globo - Porto Alegre, 1973]

quarta-feira

ACHADOS E PERDIDOS

Quintana e Alceu Valença - Foto Daniel de Andrade Simões



Eu conduzo minha poesia como um burro-sem-rabo
Nesta minha Porto Alegre de incríveis subidas e descidas.
Suo como o Diabo
E desconfio
Que os meus melhores poemas terão caído pelo caminho...
Mas como saber quais são?!
Alguém por acaso os pegará do chão
E vai ficar pensando que o espantoso achado
Pertence a ele... unicamente a ele!