CADA POEMA É UM FRAGMENTO DO POEMA GERAL QUE QUINTANA VEIO COMPONDO
DURANTE TODA A SUA VIDA

segunda-feira

CANÇÃO DA PRIMAVERA

Dancemos saudando a primavera que chega cruzando nossos sonhos. Dancemos em torno do cataventos até que as paineiras tenham por sobre os muros...florido!!!

(Para Érico Veríssimo)


Primavera cruza o rio
Cruza o sonho que tu sonhas.
Na cidade adormecida
Primavera vem chegando.


Catavento enloqueceu,
Ficou girando, girando.
Em torno do catavento
Dancemos todos em bando.


Dancemos todos, dancemos,
Amadas, Mortos, Amigos,
Dancemos todos até
Não mais saber-se o motivo...


Até que as paineiras tenham
Por sobre os muros florido!

Mario Quintana

quarta-feira

MARIO QUINTANA - REGRESSO À CASA PATERNA


Em 1953, Mario Quintana ingressa no Correio do Povo, onde permanece até seu fechamento, em 1984. Começa com a tradução de telegramas e com uma coluna semanal que se tornaria famosa, “Caderno H” que já vinha publicando na revista Província de São Pedro.

Sem dúvida, o jornalismo estava no seu sangue. Foi logo no início que ocorreu um episódio pitoresco, lembrado recentemente numa palestra pelo jornalista Walter Galvani. O novo chefe do departamento de pessoal decidiu que Mario deveria bater o cartão ponto, como os demais colegas, na entrada e na saída do expediente. O poeta se queixou na redação, o diretor Breno Caldas ficou sabendo e, de imediato, chamou o funcionário do setor e passou-lhe uma reprimenda:
- Olha, o “ponto” do Mario aqui no Correio é o que ele produz, poesia, crônica, conto ou o que quiser fazer. Nós muito nos orgulhamos dele. Não precisa outro tipo de controle.
Mesmo esse tratamento diferenciado não impediu que Quintana aderisse, no final de 1983, à greve que culminou com o fechamento do jornal, a única da história da empresa Caldas Júnior. E seu nome foi usado como bandeira pelos colegas do movimento. Quando a empresa foi adquirida por um novo grupo, Mario continuou colaborando até sua morte, dez anos depois, no dia 5 de maio de 1994.
Ao retornar ao jornal, sob nova direção, Mario Quintana deixou este registro:

REGRESSO À CASA PATERNA
De volta a estas páginas, a esta minha velha seção no Correio, voltando enfim aos meus fregueses de caderno, confesso que não tenho palavras para dizer tudo o que sinto – nem adianta sugerirem que neste caso eu poderia latir, uivar, ganir. Mas, por que não?!
Espero encontrar os leitores tal como sempre foram, embora eu mesmo já não seja o mesmo. Apresso-me a explicar: devido a um acidente de tráfego, colocaram-me no quadril esquerdo um parafuso de aço. Portanto, não pertenço unicamente ao reino animal: também faço parte do reino mineral...
Em todo o caso, o que mais importa é dizer o que significa o Correio do Povo, para a minha geração e para as gerações seguintes. Foi no Correio do Povo que aprendi as primeiras letras, antes de todas o “O” do título, que meu pai apontou com o dedo, por ser a mais simples, depois as mais complicadas. Até que, quando dei por mim, já sabia ler! Aqui estou de volta, pois, devidamente alfabetizado. Eu e os da Velha Guarda. E, como eu declarei ao Dr. Breno Caldas, da última vez que nos encontramos: “A Velha Guarda não morre e não se entrega!”.
Disse-lhe eu isto quando a gente vivia tão só de esperanças... Mas, agora, estamos ante a confortadora realidade de pertencer a um velho órgão que faz parte integrante da História do Rio Grande do Sul e, por conseguinte, da História do Brasil.

Mario Quintana
In: Porta Giratória
Ed. Globo, 1988

Texto introdutória de Antônio Goulart: “O jornalista Mario Quintana”
Revista Press – Edição 106


foto Liane Neves

segunda-feira

PARA CHEGAR MAIS PERTO DOS POETAS - MARIO QUINTANA


Há certas coisas que não haveria mesmo ocasião de as colocarmos sensatamente numa conversa – e que só num poema estão em seu lugar.


Poesia é insatisfação, num anseio de auto-superação. Um poeta satisfeito não satisfaz.

Teus poemas não os date nunca...um poema não pertence ao tempo...em seu país estranho, se existe hora, é sempre a hora extrema.

A função de um poeta não é explicar-se. A função de um poeta é expressar-se.

Repara como o poeta humaniza as coisas: dá hesitação às folhas, anseios ao vento. Talvez seja assim que Deus dá alma aos homens.

Mario Quintana
in: Para Viver com Poesia
Ed Globo - 2007

quarta-feira

PARA DESPERTAR AS FANTASIAS




Há noites em que não posso dormir de remorso, por tudo o que deixei de cometer.

As pessoas sem imaginação podem ter tido as mais imprevistas aventuras, podem ter visitado as terras mais estranhas...Nada lhes ficou. Nada lhes sobrou. Uma vida não basta ser vivida é preciso ser sonhada.

Havia um tempo de cadeiras na calçada. Era um tempo em que havia mais estrelas. Tempo em que as crianças brincavam sob a clarabóia da lua.

Há noites em que o túnel silencioso do sono é unicamente iluminado, aqui e ali, pelos olhos verdes dos fantasmas.

O mais feroz dos animais domésticos é o relógio de parede: conheço um que já devorou três gerações de minha família.

Mario Quintana

sexta-feira

PARA LEVAR A INFÂNCIA A SÉRIO - MARIO QUINTANA


As crianças não brincam de brincar. Brincam de verdade.
Vocês já repararam no olhar de uma criança quando interroga? A vida, a irrequieta inteligência que ela tem? Pois bem, você lhe dá uma resposta instantânea, definitiva, única – e verá pelos olhos dela que baixou vários risquinhos na sua consideração

Ah, aquela confiança que tem uma criança rezando...Inocente confiança. Alegria. Quem é de nós que reza com alegria? Parece que só existe mesmo o Deus das crianças...Deus é impróprio para adultos.

Não importa o enredo das histórias: o que vale é o êxtase de quem as escuta. Por isso é que as crianças gostam mesmo de ouvir sempre as mesmas histórias, como se fosse da primeira vez.


Contando Histórias - Reynaldo Fonseca

Quando a gente era deste tamanhozinho, aí sim, Deus estava logo ali por detrás das estrelas, todas elas muito perto também. Depois nos aconteceu, com a sapiência adulta, essa infinita distância... Mas na verdade as crianças estavam mais a procura da verdade. Pois Deus não será a procura de Deus?

Que importa o asfalto, o cimento, isso tudo? As meninazinhas sempre saem da escola correndo descalças sobre a relva.

Nesses desenhos de crianças – vocês também repararam? Há alguns em que não aparece aquela costumeira estradinha que leva à porta de suas casas...

A criança que brinca e o poeta que faz um poema – estão ambos na mesma idade mágica.

In: Para viver com poesia

segunda-feira

POEMAS CURTOS DE QUINTANA

O UMBIGO

O teu querido umbiguinho,
Doce ninho do meu beijo
Capital do meu desejo,
Em suas dobras misteriosas,
Ouço a voz da natureza
Num eco doce e profundo.
Não só o centro de um corpo,
Também o centro do mundo!

In: A Cor do Invisível

UMA SIMPLES ELEGIA

Caminhozinho por onde eu ia andando
e de repente te sumiste,
- o que seria que te aconteceu?
Eu sei... o tempo... as ervas más... a vida...
Não, não foi a morte que acabou contigo:
Foi a vida.
Ah, nunca a vida fez uma história mais triste
que a de um caminho que se perdeu...

In: A Vaca e o Hipogrifo

SEMPRE

Sou o dono dos tesouros perdidos no fundo do mar.
Só o que está perdido é nosso para sempre.
Nós só amamos os amigos mortos
e só as amadas mortas amam eternamente...

In: Apontamentos de História Sobrenatural





Quintana engraxando