CADA POEMA É UM FRAGMENTO DO POEMA GERAL QUE QUINTANA VEIO COMPONDO
DURANTE TODA A SUA VIDA

terça-feira

ESSE GOSTO DE NUNCA E DE SEMPRE

foto Liane Neves

Dia 5 de maio próximo completar-se-ão 16 anos do falecimento de nosso poeta. Quintana Eterno, como nos anos anteriores trará um texto especial para a data, escrito por Tais Luso de Carvalho e fotos inéditas do poeta, gentilmente cedidas por Daniel de Andrade Simões. Acho que o poema que hoje vos apresento retrata bem claramente o que Quintana representa para nós, seus admiradores: esse gosto do nunca e do sempre. O tempo era uma de suas matérias, como para Drumond, mas não apenas o tempo presente, dos homens presentes, mas também o saudoso tempo da infância, com o silêncio dos velhos corredores e os detalhes guardados na memória, como as veias azuis das mãos do velho pai. No mais, basta apenas ler o poema. Está tudo alí tão claro e cristalino como a luz da lua que iluminava as esquinas noturnas da cidade interiorana por onde o poeta andou, anotando na memória os versos do próximo poema, retirado do perfume da noite, da neblina escura e por vezes misteriosa e do cantar do grilos... ah! os grilos...

Poesia, a minha velha amiga...

Eu entrego-lhe tudo
a saber: o silêncio dos velhos corredores
uma esquina, uma lua
(porque há muitas, muitas luas...)
o primeiro olhar daquela primeira namorada
que ainda ilumina, ó alma,
como uma tênue luz de lamparina, a tua câmara de horrores.
E os grilos? Não estão ouvindo, lá fora, os grilos? Sim, os grilos...
Os grilos são os poetas mortos.
Entrego-lhe grilos aos milhões
um lápis verde
um retrato amarelecido
um velho ovo de costura
os teus pecados
as reivindicações as explicações
menos o dar de ombros e os risos contidos
mas todas as lágrimas que o orgulho estancou na fonte
as explosões de cólera o ranger de dentes
as alegrias agudas até o grito
a dança dos ossos...
Pois bem, às vezes
de tudo quanto lhe entrego, a Poesia faz uma coisa que parece nada tem
 a ver com os ingredientes mas que tem por isso mesmo um sabor total:
eternamente esse gosto de nunca e de sempre

Mario Quintana

Foto Liane neves

sexta-feira

ESCADAS


Neste poema, admirável, encontramos diversos elementos que se unem: imaginação, realidade, passado (memória), presente (ruptura). A pesquisadora Tânia Carvalhal observa que “[...] nas velhas casas, os fantasmas que as habitam reiteram sentimentos que unificam passado e presente, em busca de uma unidade impossível”. Aqui a escada é o ponto de união, ou seria ruptura... entre passado e presente. O passado representado pelas velhas casas de madeira (infância) povoadas por fantasmas. De cima da escada é possível avistar o seu fosso. Mas nada nos diz o poeta da vista de baixo para cima. O poeta não vê mais a perspectiva de subir a escada: “hoje em dia todas as escadas são para descer”. Jeniffer Alves Cuty observa: "Talvez a poética do ato de subir tenha se perdido com a idade que só avança, sendo a mobilidade permitida apenas aos personagens que povoam a memória." Resta ainda um enigma: o abismo que separa o poeta e o leitor. Boa procura.

ESCADAS


Escadas de caracol
Sempre
São misteriosas; conturbam...
Quando as desce, a gente
Se desparafusa...
Quando a gente as sobe
Se parafusa
-o peito
estreito –
o teto descendo
Descendo descendo como nas histórias de imortal horror!
Mas de que jeito,
Mas como pode ser.
Morrer cair rolar por uma escada de parafuso?
Além disso não têm, pelo dizem nenhuma acústica...
Oh! Não há como as escadarias daqueles antigos
edifícios públicos
Para ser assassinado...
Porém não fiques tão eufórico,
- nem tudo são rosas:
Há,
No sonho das velhas casas de cômodos onde moras,
Passos que vêm subindo degrau por degrau em
direção ao teu quarto
E “sabes” que é um fantasma chamejante e fosfóreo
- o corpo todo feito de inconsumíveis labaredas verdes!
O melhor
Mesmo
É fechar os olhos
E pensar numa outra coisa...
Pensa, pensa
- o quanto antes!
Naquelas podres escadas de madeira das casas pobres
-escurinho dos teus primeiros aconchegos...
Pensa em cascatas de risos
Escada a baixo
De crianças deixando a escola...
Pensa na escada do poema
Que tu
comigo
vem descendo
agora...
(Hoje em dia todas as escadas são para descer)
Mas não! este poema não é
Nenhum
Abrigo
Antiaéreo...
Ah, tu querias que eu te embalasse?!
Eu estava , apenas, explorando uns abismos...

Mario Quintana in: Apontamentos de História Sobrenatural

segunda-feira

POEMA MARCIANO NÚMERO DOIS

A Cadeira
Vincent Van Gogh

“Nós os marcianos”, refere-se Quintana aos artistas: poetas, pintores, escultores, enfim, todos aqueles que tem a sensibilidade de ver o singular, o detalhe, o diferente, nas coisas que para a maioria dos mortais passam simplesmente despercebidas.

Nós, os marcianos,
não sabemos nada de nada,
por isso descobrimos coisas
que
de tão visíveis
vocês poderiam até sentar em cima delas...
Não brinco! Não minto! Um dia, um de nós (Van Gogh)
pintou uma cadeira vulgar.
Umas dessas cadeiras de palha trançada...
Mas, quando a viram na tela, foi aquela espantação:
“Uma cadeira!” exclamaram.
“Uma cadeira? Não, a cadeira.
Tudo é singular
Até as Autoridades sabem disso...
Se não, me explica
por que iriam fazer tanta questão
das tuas impressões digitais?!

Mario Quintana in:Esconderijos do Tempo

quarta-feira

RAIZES


A confissão de Mario da tortura que eram para ele as raízes quadradas e cúbicas, um mundo incompreensível e distante. Preferia o mundo natural curtindo o frescor do cheiro úmido das raízes e vegetais. Mario se diz um marciano, para ele marcianos são os artistas que vêem o singular, o diferente onde todos os outros humanos, todos tão iguais, só enxergam o obvio.

Quando colegial, como eu gostava do cheiro úmido das raízes dos vegetais. Porém, ao lado desse mundo natural, queriam fazer-me acreditar no mundo seco das raízes quadradas, que para mim tinham algo de incompreensíveis signos de linguagem marciana. Mas a tortura máxima eram as raízes cúbicas. Felizmente agora, os robôs tomaram conta disso e de outras coisas parecidas com eles... Felizmente não mais existe o meu velho professor de matemática. Se não, ele morreria aos poucos de raiva e frustração por se ver sobrepujado, por me ver continuando a fazer coisas aparentemente insólitas porque não constam de currículos e compêndios, porque agora, meu caro professor, agora o marciano sou eu mesmo.

Mario Quintana in: A Vaca e o Hipogrifo

terça-feira

O SILÊNCIO E OS SILÊNCIOS

MARCEL MARCEAU

O silêncio é um momento de reflexão, ou talvez um momento de dor. Há momentos em que buscamos o silêncio, noutros buscamos fugir dele. Silêncio é um produto caro e escasso na cidade, mas abundante no campo. O silêncio pode ser uma atitude sábia, mas também pode significar omissão, medo, desilusão. Quintana disse em "No Princípio do Fim":" Hoje o que mais se precisa é de silêncios...que interrompam os ruidos". Quantas faces tem o silêncio... alegria, sabedoria, dor, desespero, ódio, medo. De quantos silêncios é feita uma vida...
Bernardo

SILÊNCIOS


Há um silêncio de antes de abrir-se um telegrama urgente
há um silêncio de um primeiro olhar de desejo
há um silêncio trêmulo de teias ao apanhar uma mosca
e
O silêncio de uma lápide que ninguém lê.


O SILÊNCIO


Convivência entre o poeta e o leitor, só no silêncio da leitura a sós. A sós, os dois. Isto é, livro e leitor. Este não quer saber de terceiros, não quer que interpretem, que cantem, que dancem um poema. O verdadeiro amador de poemas ama em silêncio...

MARIO QUINTANA in: A Vaca e o Hipogrifo